"Janelinhas para o Mundo" - reflexões, contos, crônicas: cenas de uma infância inesquecícel.
 
                  Houve um tempo, não tão distante desta virada de século, há algumas décadas, uma época conhecida - pelas novas gerações - por "anos dourados", em que ser criança era somente... ser criança.
                  Em muitos rincões deste Brasil de Deus, ainda não se cogitava a existência de televisores; apenas ouvia-se falar em um tipo de rádio que "mostrava os artistas lá dentro", cantando e falando. 
                  Nesse universo ingênuo, na pequenina cidade de Monte Verde, perdida no poético interiorzão paulista, o programa de fim-de-tarde e começo-de-noite era brincar de pique na pracinha central, um dos poucos momentos em que os moços e as moças topavam misturar-se à  meninada. 
                  Nesse mundinho feliz, vivia a pequena Isa.

Uma mulher “estérica”

Oriza Martins Pinto
       À medida que crescia em conhecimentos, em discernimento, Isa não mais se conformava em sentir alguma dúvida. Ia à luta. Perguntava, pesquisava.
       Um dia, assistiu a um diálogo entre sua mãe e uma vizinha. Ambas falavam a respeito de uma jovem da cidade, a qual havia “se perdido” com o namorado e, agora, era uma mulher de vida-livre.
       - Dizem que ela é “estérica”, - disse a vizinha.
       Dona Bila arregalou os olhos:
       - É mesmo?!
       A pequena Isa interferiu, curiosa:
       - O que é uma mulher “estérica”?
       Dona Bila cortou a conversa:
       - Quieta, Isa! Isto não é assunto para você!
       Isa retirou-se, continuando a ouvir a conversa através da porta entreaberta.
       - Então, ela é “estérica”... – murmurava, admirada, Dona Bila.
       - É verdade! As mulheres “estéricas” precisam de vários homens para se satisfazer, - completou a vizinha. – Ela é assim.
       - Mas, então, como foi que ela engravidou? Dizem que as “estéricas” precisam ter vários homens, mas não conseguem engravidar! – indagou, perturbada, Dona Bila.
       O diálogo entre Dona Bila e a vizinha continuou por algum tempo, presenciado, em surdina, pela pequena Isa. A menina, com a curiosidade aguçada, decidiu-se a pesquisar mais o assunto. Através daquela conversa enviesada, ficara sabendo que as “estéricas” necessitam de vários homens para se satisfazer e que não conseguem engravidar.
        Passou-se muito tempo até que a pequena Isa compreendesse a verdade.
        A ignorância e o senso-comum, muitas vezes, caminham lado-a-lado, podendo apresentar esses reflexos enviesados do conhecimento científico. Um dia, Isa compreendeu que ambas – sua mãe e a vizinha -, conversavam a respeito de dois conceitos distintos: histeria e esterilidade. Os conhecimentos de ambas, entretanto, eram produtos do universo cultural em que estavam inseridas. Ambos os conceitos se fundiam, ou melhor, se confundiam, como resultado do saber-popular.
        Provavelmente a moça da qual falavam, era considerada “histérica”, de um ponto de vista sexual, tal como vulgarmente se convenciona chamar determinadas pessoas que manifestam algum tipo de comportamento diferenciado. A histeria, embora popularmente possa se traduzir por irritação, por nervosismo, insere-se em um campo de conhecimento muito mais amplo - na medicina, na psicanálise -, caracterizando-se por neuroses que se apresentam através da transformação de conflitos psicológicos em sintomas orgânicos, não necessariamente sexuais.
        Ao mesmo tempo, elas conversavam sobre esterilidade feminina, ou seja, a respeito de mulheres estéreis, que, por alguma razão biológica, não conseguem engravidar. Uma mulher pode, portanto, ser histérica, sem ser estéril e vice-versa, mas, no saber-popular revelado por ambas, os conceitos de fundiram, resumidamente, em “estérica”.
        Aos poucos, a pequena Isa foi compreendendo as diferenças entre os vários tipos de conhecimentos e, sem desvalorizar o saber-popular, percebia a importância de se possibilitar universalização do acesso ao conhecimento científico às populações em geral, numa busca de melhoria da qualidade de vida, para a humanidade, em todos os seus aspectos. 
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